Ivânia Vieira **
Há 49 anos, desde a criação do festival, Nossa Senhora do Carmo abençoa o Boi-Bumbá de Parintins (a “ilha encantada” da região do Baixo Amazonas).
Se no começo dessa história era complicado entender e aceitar a presença da santa, carregada de um lado a outro no território da festa, ora pelo Boi Azul ora pelo Boi Vermelho, hoje um grande acordo reúne partes aparentemente dissociáveis dessa que é uma das mais arrojadas tramas amazônicas.
Às bênçãos da santa, padroeira do município, misturam-se os rituais dos pajés, os rebolados em dois tons das cunhãs-porangas, as danças sincronizadas das tribos, a molequice de Pai Francisco e Catirina e as loucuras de milhares de fanáticos torcedores saídos de todas as regiões do mundo.
É um caldeirão cultural capaz de confraternizar o profano e o religioso.
E é esse mundo que o jornalista, escritor e professor Wilson Nogueira nos leva a conhecer com toda intensidade provocada pelos cenários marcados por cores fortes, alta temperatura, disputas intensas, desencantos e encantos.
Boi-bumbá: imaginário e espetáculo na Amazônia, livro resultado da tese de doutoramento de Wilson Nogueira faz mergulhos profundos nos múltiplos aspectos envolvidos na brincadeira mais famosa do Amazonas e da Amazônia Ocidental.
Nas primeiras páginas o autor avisa a que veio ao situar o Boi-Bumbá de Parintins como manifestação cultural da Amazônia e o desaguadouro do imaginário amazônico para o espetáculo midiático.
Amante das letras quer escrevendo-as quer lendo-as, usa esse amor para mobilizar razão, sensibilidade, lembranças, desejos, imaginação, criação, ficção realidade e sociabilidades na construção desse livro, a primeira obra onde a maturidade científico-autoral se revela mais completamente.
A publicação não trata apenas do boi-bumbá parintinense.
Recorre à festa como ancoradouro, ao antes e depois dela, para estabelecer diferentes diálogos com o mundo, apresentar entrelaçamentos culturais, feições mercadológicas, afetividades e nuanças da paixão tendo o rio Amazonas como transportador (recebendo e despachando) esses acontecimentos.
Como tese, o trabalho de Wilson Nogueira cumpre uma tarefa singular: ajuda a região Amazônica a reduzir o acanhamento da produção científica, amplia a produção de conhecimentos em torno de realidades amazônicas e oferece um novo olhar sobre o boi-bumbá de Parintins.
O livro tempera o formato e abre caminhos de liberdades tal como afirma o autor à pag. 42 “[…]aprendi a viajar, a imaginar e a caminhar por lugares e mundos desconhecidos[…]” e, assim, também nos leva a querer viajar nas páginas, “[…] a caminhar na floresta, a identificar as árvores, os animais, a coletar os frutos[…]” ou desenhar no chão batido da Baixa do São José, um lugar de feitiço da floresta do universo.
Ao tecer os fios da publicação, o autor desafia nossas reações diante dos dramas e das alegrias da Terra. O que realmente nos importa nessa passagem por ela?
Quanto tempo é preciso para descobrir o que Ailton Krenak, convocado por Wilson Nogueira nesta obra, quer dizer: “[…] quando estamos cantando para os pássaros, eles cantam para a gente, então nós cantamos para as pedras, para a montanha, para as águas dos rios, para os peixes”.
Eis aqui uma história feita de tantos enredos que vale ser degustada.
*O texto está na contracapa do livro.
**A autora é jornalista, escritora e professora de Jornalismo na Ufam.