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Ignácio de Loyola Brandão recria Kafka e transforma o “repulsivo inseto” em Bolsonaro

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Wilson Nogueira

O escritor e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) Ignácio de Loyola Brandão disse ontem, em Manaus, que se fosse reescrever o livro Metamorfose, de Franz Kafka, começaria assim: “Naquela manhã, aquele repulsivo inseto acordou transformado em Jair Bolsonaro”.

Em palestra no Café Literário da 34ª Feira de Livros do Sesc, no sábado (7/12), Brandão entremeou experiência de vida, percurso literário e críticas ao domínio do absurdo sobre a realidade brasileira.

“Estamos vivendo uma coisa muito louca. O absurdo tomou conta”, disse.

Ele revelou que aprendeu sobre o paradoxo do absurdo ainda criança, numa atividade escolar voltada para a criação literária.

“Nunca mais eu esqueci disso:  que o absurdo não existe, que a realidade é mais absurda que o próprio absurdo”, lembrou.

Ele citou como exemplos fatos que autoridades do governo querem transformar em absurdos, como aquecimento global inexistente, o nazismo com ideologia de esquerda e Os Beatles como banda satânica.

Assim, o escritor afirmou que vem percebendo, inclusive nos seus escritos, que absurdo e realidade se confundem em existência.

Quando escreveu, ainda nos anos de 1980, sobre a desertificação da Amazônia, a falta d´água no planeta e o aquecimento global, não imaginava que essas questões se tornariam realidade, embora essa realidade esteja ao mesmo tempo sendo negada.

Brandão enfatiza que a sua reflexão sobre absurdo e realidade se aguçou ainda mais ao ter contato com Metamorfose, com a professora Lourdes lendo a primeira frase: “Naquela manhã, Gregor Sansa acordou transformado em um repulsivo inseto”.

“Isso ajudou a liberar a minha cabeça mais ainda”, revelou.

Trecho da palestra:

 

 

Num determinado dia, no segundo ano, a Lourdes [professora] deu pra nós uma cadernetinha. Eu tinha de oito pra nove anos à essa altura, e disse ela: Agora vocês vão pra rua e vão anotar tudo o que for interessante no bairro.

Uma coisa divertida, uma coisa triste, uma coisa dramática, uma coisa curiosa.

E daí, dona Lourdes?

No fim do mês vai ter uma redação, que na época se chamava composição, sobre o nosso bairro.

E pra quê?

Ora, pra vocês saberem como é o lugar em que vivemos. Aqui vocês estudam para aprender a viver lá, a viver melhor no bairro.

A gente não entendeu muito, mas fomos fazendo, fomos fazendo… Até que começou a pegar jeito aquilo.

Num determinado dia, eu não tinha assunto, por preguiça ou por alguma coisa. Inventei uma girafa com um pescoço de duzentos metros de altura, que se enroscava no fio elétrico.

E aí, veio a Lourdes e me deu cem.

Naquela época as notas eram de zero a cem. Hoje são critérios diferentes.

E daí um menino reclamou. Disse: olha, o Ignácio escreveu uma mentira e a senhora deu cem. E eu, que escrevi uma verdade, porque a minha mãe é lavadeira. Aqui no bairro não tem água. Meu pai é um rodoviário, um funcionário muito simples, e a gente leva uma vida difícil […], apertada, remedida […] e aí por que a senhora me deu sessenta?

E ela veio e disse: o Ignácio não mentiu, o Ignácio inventou.

E daí?

É a imaginação, é a fantasia.

É. Mas por quê?

Mentira não é fantasia.

E o que é que eu faço com a fantasia, dona Lourdes?

Um dia você vai saber que a fantasia te ajuda a suportar a viver a realidade

Ah! Mas é tudo muito louco!

E ela falou assim: nunca se esqueça: absurdo não existe. Você falou mentira, mas pode ser absurdo.  A realidade é mais absurda.

Eu estou falando de uma professora dos anos quarenta.

Nunca mais eu esqueci disso:  que o absurdo não existe. Que a realidade é mais absurda que o próprio absurdo.

Portanto, ela me liberou para escrever para a vida inteira, para escrever os livros que escrevi.

Se eu fiz Não verás país nenhum

Se já nos anos oitenta eu falei de aquecimento global, de deserto amazônico, de falta d´água e que tá tudo lá, tudo aí agora.

Claro que nada disso é aceito, tudo é mentira. O que tá aí não existe.

O aquecimento global não existe. O aquecimento global é uma coisa do Marx, do Karl Marx, criador do comunismo. Pobre Marx de lá de duzentos anos atrás.

Mesmo porque o nazismo também é coisa da esquerda.

Assim como os Beatles são satãs, levando todo mundo pra…

Estamos vivendo uma coisa muito louca. O absurdo tomou conta.

Eu me lembro que mais tarde, já no último ano, a Lourdes – falando de absurdo – nos leu o primeiro trecho da Metamorfose do Kafka.

Aí ela leu a primeira frase da Metamorfose do Kafka e disse: esse romance modificou a literatura moderna.

E a frase é a seguinte: “Naquela manhã, Gregor Sansa acordo transformado em um repulsivo inseto”.

E daí começa a história desse homem que é transformado num inseto.

Muito antes se dizia que era uma barata, mas até hoje é um grande inseto repulsivo.

Se Kafka achasse [isso] absurdo não teria escrito um livro fundamental.

Isso ajudou a liberar a minha cabeça mais ainda.

Eu fui aproveitando essas coisas, e esses professores me formaram.

Assim como mais tarde, no ginásio e no científico, os professores me abriram a cabeça.

Nunca me esqueço do professor de português, que era muito bom, que dizia assim: cuidado com o lhe, que [esse] estraga qualquer frase, quando mau empregado.

Até hoje, quando vou colocar um lhe, eu rodeio, eu rodeio, até não colocar.

E uma coisa mais curiosa que o Jurandir [professor de Língua Portuguesa] dizia: o ponto e vírgula só pode ser usado por um imbecil ou por quem escreve muitíssimo bem.

Até hoje não sei para que serve o ponto e vírgula. Boto logo um ponto.

Eu me safo dessas dificuldades assim.

Recentemente eu pensei: se eu fosse reescrever a Metamorfose, eu reescreveria assim: Naquela manhã, aquele repulsivo isento acordou transformado em Jair Bolsonaro.

Essa me veio do coração.

 

 

 

 

 

 

 

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1 comentário
  1. Dori Carvalho Diz

    Muito bom. Você recriou o clima da conversa.

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