Wilson Nogueira
Quem passa pela da Praça Heliodoro Balbi, antiga Praça da Polícia, no centro de Manaus (AM), percebe, sem muito esforço, que o frondoso pau-mulato ou mulateiro (Calycophyllum spruceanum) dá sinais de que sente o peso do tempo.
Conhecida pelas populações da floresta amazônica como árvore da juventude, em razão do renovo anual das suas cascas, o exemplar da Praça Heliodoro Balbi é, também, um monumento em homenagem à renovação da literatura amazonense.
Em 22 de novembro de 1954, um grupo de oito jovens intelectuais, acolhidos por essa frondosa árvore, fundaram o Clube da Madrugada, por meio do qual se viabilizou um movimento de mudança nas artes amazonenses.
No pé do mulateiro foi afixada em 2009, por iniciativa da então Secretaria de Estado da Cultura (SEC), uma placa de aço inoxidável e cimento com os nomes dos oito intelectuais que participaram da reunião de fundação.
São eles: Carlos Farias de Carvalho, Celso Melo, Fernando Colliyer, Francisco Ferreira Batista, João Bosco Araújo, Luiz Bacellar, Raimundo Teodoro Botinelly de Assumpção e Saul Benchimol.
Os madrugadistas – artistas da prosa, da poesia, das artes plásticas, do cinema e do teatro – criticavam e agiam na contramão da produção intelectual conservadora da época.
Por isso, estudiosos Clube da Madrugada sustentam que a iniciativa é resultado de uma repercussão tardia da Semana de Arte Moderna de 1922, ocorrida em São Paulo, e que transformou as artes e a cultura brasileiras.
Têm presença marcante nesse movimento Mário de Andrade, Oswald Andrade, Graça Aranha e Tarsila do Amaral.
Outros, atribuem aos madrugadistas a influência da Geração de 1945, da qual surgiram escritores como João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector e João Guimarães Rosa.
Metáforas
A adoção de uma árvore como símbolo de mudança cultural é muito significativa, principalmente em Manaus, cidade cercada de floresta.
O padre Antônio Vieira disse que as culturas indígenas se assemelhavam às murtas que não se conformam às podas.
Ou seja: as pregações dos religiosos entravam por um ouvido e saiam pelo outro.
O antropólogo Eduardo Viveiro de Castro recorreu à metáfora de Antônio Vieira e escreveu um artigo chamado O Mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem, no qual compara a cultura europeia à arte forjada no mármore, cuja perspectiva é a eternidade; e as culturas indígenas aos ressurgimento dos galhos da murta após às podas, sempre mais irregulares em relação aos anteriores.
Os índios, para o jesuíta, possuem almas inconstantes, pois insinuam aderir à modelagem cultural europeia, sem ir além dessa dissimulação, e logo retornam aos seus mitos.
Também é possível dizer que as almas inconstantes não pretendem a eternidade, porque, se isso almejassem, negariam a sua própria fonte de rejuvenescimento.
O mulateiro que se verga ao tempo já tem tronco carcomido por fungos, cupins e outros seres imperceptíveis; também não resiste mais às ervas daninhas e aos brotos do apuizeiro, a árvore do abraço mortal, que nele se empinam elegantes e ardilosos.
Mais cedo ou mais tarde morrerá, para dar lugar a outro mulateiro, talvez.
Se não vier outro, as demais árvores representarão muito bem as almas indomadas que virão no rastro dos madrugadistas de 1954 que, vistos hoje, já preferem a mão única.
Entre os humanos, surgirão novas gerações de almas inconstantes.
Nos mulatais, novos mulateiros também.
Um pouco mais duradoura será a placa de aço fundido com oito nomes gravados, que da Praça poderá migrar para um museu, onde se postará, imóvel e solitária, para o horizonte da eternidade.
Quatro livros sobre a história do Clube da Madrugada
As artes plásticas no Amazonas: o Clube da Madrugada (Valer)
Luciane Pascoa
Clube da madrugada: presença modernista no Amazonas (Valer)
Tenório Telles
Quadros da moderna poesia amazonense (Valer)
Alencar e Silva
Lira da Madrugada (Valer)
Mauri Mrq e Zémaria Pinto
Texto maravilhoso sobre essa linda árvore e sua história encantadora,que se faz presente não só na literatura,mas também na nossa floresta que exala um aroma peculiar que se leva com o vento.
Isso mesmo. obrigado.