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Garantido, o boi do meu “biza” Lindolfo Monteverde [Por Suzan Monteverde]

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Suzan Monteverde, a bisneta em ação

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Suzan Monteverde*

Nas manhãs de domingo, meus pais me chamavam para ir ao almoço da família, na Baixa da Xanda, um reduto de pescadores, hoje atravessada pela avenida Lindolfo Monteverde (antes avenida Vicente Reis).

Da avenida, descíamos o beco de acesso à entrada do rio Amazonas na parte baixa do terreno, saliência geográfica que empresta nome ao lugar.

Na entrada, uma rampa, comércio, um morador nissei (sêo Homero Hidaka), e logo à esquerda, a maioria dos moradores da família Monteverde, e à direita, a área alagadiça que forma a beirada da baixa.

Em frente à casa vermelha e branca, bem do lado esquerdo do beco, meu avô materno, Antônio Monteverde, estava apreciando a descida e subidas dos pescadores com seus arreios, canoas e prosas afiadas.

Do lado da casa dele, ficava uma baiúca, onde eram armazenados os peixes que ele comprava para revendê-los.

Sua bicicleta cargueira, com uma caixa de isopor, e uma balança vertical estavam sempre próximas dele.

Era sempre assim: eu chegava na Baixa e o vovô já estava na frente de casa – sentado na sua cadeira, óculos escuros, tabaco e um radinho de pilha ao ouvido – a contemplar o Amazonas, embalado pelo ventinho bom que soprava do rio.

E o que dizer da castanholeira da vizinha, da sumaumeira na frente da casa do vovô, dos tucumanzeiros nos quintais, da passagem do quintal da tia Maria (irmã do vovô) para o curral do boi Garantido?

Não posso deixar de citar, o banho de rio do mês de junho, quando todos enfrentavam as correntezas do rio Amazonas sem medo ou receio, depois das partidas de futebol com as cunhatãs nos campos dos becos vizinhos.

São essas e tantas outras lembranças da tenra idade, vividas e divididas com o vovô.

Nos fins de tarde da década de 1990, as cunhatãs e os curumins da Baixa corriam para tomar banho e esperar o ensaio no curral.

As crianças iam cedo para se divertir batendo nos tambores antes da chegada dos batuqueiros; também corríamos e dançávamos no meio dos adultos as toadas da época.

Sempre com os pais ou familiares de olho nas nossas estripulias.

Havia por alguns sábados uma programação voltada somente para crianças, com concurso de cunhãs, brincadeiras com palhaços locais, entre eles, o Goiabada.

As crianças respondiam a perguntinhas sobre a história do Garantido e, também, eram envolvidas por brincadeiras recreativas.

Como descobriria mais tarde, naquele lugar, o meu bisavô e os meus familiares haviam construído um legado para a cultura popular de Parintins e do Amazonas.

O boi-bumbá Garantido estava emoldurada no quadro colocado no corredor da casa do meu vovô, com o encarnado (vermelho) sempre se sobressaindo entre as demais cores ali espalhadas.

Havia ali uma lenda viva, com a qual eu começava a me relacionar mais intensamente: o boi do meu bisavô, o boi da família, o boi branquinho e de coração na testa.

Lindolpho Marinho da Silva, mais conhecido como Lindolfo Monteverde, nasceu em no dia de hoje (2/1) de 1902, na cidade de Parintins.

E faleceu no dia 05 de julho de 1979, uma quinta-feira, aos 77 anos, em Parintins.


Leia também: Baixa faz festa para Lindolfo Monteverde, fundador do boi Garantido


Descendente de negros escravizados – seus filhos contam que sua avó era marcada a ferro e fogo nas costas -, Lindolfo tornou-se  cancioneiro popular, poeta e fundador do boi Garantido.

Cantava tão forte e tão afinado que virou lenta.

Sempre ouvi dizer que quando ele cantava a terra estremecia; ou que, quando cantava na Baixa, ouvia-se no bairro da Francesa, no curral do boi contrário.

Lindolfo, pai de seis filhos, boêmio, versador, pescador, forjou seu boi na simplicidade e na força da tradição do povo humilde da Baixa da Xanda..

Seu boi sempre foi branco, com coração na testa; primeiro pintado com carvão, depois, com tinta vermelha bem viva.

O boi-bumbá Garantido, o legado de Lindolfo, também chamado Mestre Lindolfo, nasceu no meio dos humildes e a esses dedicou, dedica e dedicará a sua existência, como um farol poético das suas aspirações.

Não conheci o meu bisavô. O meu avô sempre contava histórias sobre ele e o seu Garantido antes de a gente dormir.

Cresci vendo o desenrolar de uma brincadeira simples.

Cresci sabendo que teríamos que fazer todos os anos as festas tradicionais que meu bisavô fazia, para que a nossa família não esqueça das suas origens e das suas tradições.

Assim fazemos. O espetáculo alcançado pelos bois de Parintins não deve se sobrepor ao boi de terreiro e ao boi de rua.

Na minha vivência, junho é um mês de família, mês da exaltação à promessa de meu bisavô a São João, que o curou de uma grave doença.

Como retribuição, Lindolfo se comprometeu com o santo que criaria o Garantido, para brincar todos os anos, no terreiro e nas ruas.

Ele cumpriu a promessa. E o Garantido brinca todos os anos no curral e nas ruas.

Por isso, o Garantido é chamado de Boi do Povão, porque assume a diversidade sociocultural, porque aglutina os ares da modernidade sem perder a essência de brincadeira popular.

O torcedor ou o brincante do vermelho sabe de onde veio o seu boi, quem é o seu fundador, sabe qual é o seu lugar de origem.

Sabe, assim como Lindolfo, que a beleza se manifesta na simplicidade, na luta cotidiana, no rufar dos tambores, no balançar dos braços e no ritmo da toada.

Por tudo isso, o ser da Baixa é sinônimo de força e alegria do povo encarnado.

É também motivo de identidade individual e coletiva.

“Urrou meu novilho / na praia pequena / na beira do rio / o meu boi urrou / todo o povo sorriu…”

Esse é o boi de Lindolfo, celebrado por estar na memória do povo simples, uma brincadeira para a acalantar a vida difícil, por meio da crítica contida na inversão de papéis sociais: personagens do povo assumem papéis fundamentais no enredo que denuncia as desigualdades e as injustiças.

A brincadeira do Garantido é um espaço livre da opressão, pois nele se estimula o canto, a dança, o desafio versado e o sorriso largo.

Lindolfo vive no coração de cada brincante que bate forte no ritmo do “dois para lá, dois para cá”.

Vive na mente e na memória de quem conviveu com ele, na genialidade dos seus versos, no sorriso dos seus brincantes e nos símbolos de sua brincadeira.

O boi de pano tem corpo, alma e coração, imaginários de meninos e meninas, fé do criador.

Esse é um legado que passa de geração para geração e se constitui o orgulho de uma grande família, a família Garantido.

*A autora é jornalista e professora da Ufam/Parintins 

 

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