Ainda há tempo para ouvir Raul Seixas [Por Wilson Nogueira*]
É preciso parar o mundo para expor as suas interdependências, as suas complementariedades, os seus antagonismos, as suas contradições.
Quando Raul Seixas escreveu e cantou O dia em que a terra parou as epidemias já rondavam o mundo havia muito tempo.
Não seria forçoso entendê-lo de forma tão direta assim, afinal vivemos uma situação real em que a terra parou.
Mas a interpretação da obra artística não deve se prender somente àquilo que o criador pensou ou deixou de pensar sobre a sua criação.
Cada espectador/leitor/ouvinte, diante da arte edificante, realça impressões a partir da sua visão de mundo.
É assim que a obra se torna imortal, porque, como acontece com o universo, ela também se expande no espaço e no tempo infinitos.
Raul nos estende a possibilidade de acesso à consciência de que, em algum momento, devemos parar para pensar na complexidade do mundo, partindo de situações básicas do cotidiano, como o costume de comprar pão pela manhã, na esquina.
É preciso parar o mundo para expor as suas interdependências, as suas complementariedades, os seus antagonismos, as suas contradições.
Essa parada, pensada por Raul, viria como resultado de uma profunda conscientização de que o planeta é uno e múltiplo ao mesmo tempo, um estado iluminado, uma espiritualidade elevada, para devolver a humanidade à unidade da natureza.
Parece-me que a chave dessa interpretação está no fato de que, no “sonho do sonhador”, todas as pessoas do mundo inteiro “resolveram não sair de casa”.
No contexto desta pandemia do novo coronavírus, as pessoas em todo o mundo foram, antes mesmo de decidir espontaneamente, obrigadas a parar em razão do medo de morrer.
Melhor seria se tivéssemos ouvido, também com a consciência, O dia em que a terra parou.
Certamente, não estaríamos passando por esse aperreio, pagando muito mais caro pela ignorância, insensatez e insensibilidade.
A natureza, por sua vez, manifesta-se agradecida à força dos seus mistérios e incertezas que fizeram o mundo dos humanos parar por algumas semanas ou meses. Quem sabe!?
Os golfinhos, os peixes e os cisnes voltaram a nadar nos canais de Veneza, em Roma.
A passarada e as tartarugas retornaram à Lagoa Rodrigo de Fretas, no Rio de Janeiro, Brasil.
Ursos, alces, renas, esquilos e bichos que até estavam considerados extintos reapareceram em cidades da Europa, atraídos pela ausência dos carros e das multidões nas ruas.
Nos parques de safari da África, leões, guepardos, leopardos e tigres aproveitam o calor do asfalto para fazer uma sonolenta sesta, porque os turistas não estão por lá para lhes aporrinhar.
O Raul, inspirado nos ensinamentos místicos, na ciência e na arte do bem viver, deu o seu recado profundo.
Poucos o ouviram.
A ciência também dá o seu recado.
Poucos a ouvem.
Os ensinamentos místicos dão seus recados.
Poucos os ouvem.
Agora é a natureza que se apresenta irada.
Ainda assim, são muitos os que não a ouvem.
Os ouvidos parecem mais atentos ao apelo frenético do consumismo, o qual já nos acena com um fim trágico para a vida no planeta.
Particularmente, rogo que essa pandemia seja freada o mais rápido possível, mas que nos afete com um jeito de bem viver.
*O autor é jornalista e escritor