Na boca da noite um barulho pras bandas da cozinha nos assustou (eu, Rosário e Enã).
O Enã correu para ver do que se tratava e logo voltou assustado.
-Um pombo está morto na sacada!
-Mau agouro! Sentenciou Maria do Rosário. Ela fez o sinal da cruz, apanhou a sua Bíblia e foi-se recolher em orações na sacada do quarto.
Eu fiquei no quarto conversando com os meus botões.
Pela manhã, fui até a sacada da sala de estar e lá constatei, ao lado do vaso com um pé de rosa do deserto e de um simulacro de jabuti, uma pomba-rola roxa de peito pra cima, com as asas bem fechadinhas.
Penso que essa ave foi expulsa do seu poleiro por um predador ou por algum barulho que a fez sair em fuga e, assim, chocou-se com a vidraça da sala.
Só o instinto de sobrevivência, acredito, pode tê-la tirado do sono para a morte, por trata-se de uma ave de hábito diurno.
À noite, esse tipo de acidente dificilmente ocorrerá com uma coruja.
Mas isso é o que diz a minha formação para racionalidade.
Ao mesmo tempo, sou gente da floresta, portador de culturas ancestrais.
O racional e o simbólico se misturam no meu ser e, por isso, casos e causos afetam, igualmente, a minha percepção.
Olhando para cena agourenta não pude deixar de considerar tamanha coincidência: uma ave veio morrer ao lado de um jabuti e de uma rosa do deserto, ambos símbolos de vida longa.
O simulacro foi um presente do Enã, no dia do meu aniversário de 60 anos, que também ofertou a planta à sua queridíssima.
-O que significa tudo isso? – Perguntei ao meu espírito supersticioso.
Lembrei-me que ouvia – e ouça ainda agora – histórias horripilantes de maus agouros.
Os sábios antigos, hoje chamados xamãs, sacerdotes ou videntes, faziam suas previsões baseados no voou ou no canto dos pássaros.
Os maus pressentimentos recaem, principalmente, sobre a coruja e sobre o urubu.
Assim, quando uma coruja-rasga-mortalha piava sobre uma residência, seus donos entravam em estado de pavor.
“Meu Deus, algo de ruim vai acontecer!”
E não demorava muito, lá chegava a má notícia que logo era associada à ave malfadada.
Assim, depois daquela noite, em nossa bolha anti-covid-19, nos entreolhávamos com indagações sem mexer com os lábios.
Minha análise e conclusão sherlockiana valeu muito pouco ou quase nada para o ambiente da bolha.
Nem pra mim!
E não demoraram a chegar as más notícias.
Um parente foi pego pela Covid-19 e está em estado grave, outra parenta também foi infectada e morreu.
Enquanto isso, a ave mecânica vomita seus mortos nas salas de estar diuturnamente, sem qualquer aviso prévio, sem chance de premonição ou de explicação sherlockiana.
As mortes vão acontecendo e, para o louco que bravateia no planalto, elas são necessárias porque nada significam para ele.
[Nem para o mercado]
Ele é o próprio agouro.