Leitora do escritor norte-americano Henry David Thoreau (1817-1862), autor de Walden, para quem ciência e imaginação e factual e maravilhoso estão entremeados, Leyla Leong escreve e desenha por linhas inspiradas nesse mestre.
Não é de se estranhar que ela tenha se maravilhado com Walden, extraído do autoisolamento de Thoreau no lago Walden, em Concord, Massachusetts. Afinal, esse escritor se autodeclarava ilustrado pelos ensinamentos de Alexander Von Humboldt (1769-1859), tido hoje como formulador do pensamento ecológico contemporâneo.
Humboldt fez uma tradução das linguagens da natureza para a humanidade após viagens ao redor da terra, e a mais importante delas se realizou através da pan-amazônia, mais precisamente pela Venezuela, Bolívia, Colômbia e Equador.
Cosmos é uma das grandes obras de Humbaldt, para quem a terra se manifesta viva pela relação entre seres e objetos que a constituem.
Leyla, por sua vez, foi apresentada a Thoreau ainda na juventude. Não havia momento mais propício e profícuo para ela se apaixonar por Walden e, consequentemente, pela natureza. Não mais somente por suas dádivas e beleza, mas porque passou a compreendê-la por meio de “olhos novos” – os olhos de Thoreau, os olhos de Humboldt.
A cidade colombiana de Letícia, na beira do rio Amazonas, região da tríplice fronteira Brasil/Colômbia/Peru, onde morou quando criança, passou a ser o lago Walden da Leyla escritora, por meio das suas lembranças e imaginação.
Os livros de Leyla contêm essas explorações das culturas e dos imaginários amazônicos, abarrotadas de cheiros, cores, texturas, sons das gentes e bichos dos rios e das florestas.
“Essa leitura me despertou para a necessidade de fazer algo em favor da preservação da Natureza em agradecimento por todos os prazeres e encantamento que ela me proporcionou na minha infância e que estava sendo destruída”, disse ela à esta entrevista que segue:
Os seus livros para crianças trazem mensagem sobre a relação entre seres humanos com outros seres vivos. Esse é um tema que, no decorrer dos anos, tem se tornado cada vez mais importante e necessário. Leyla, a escritora, de onde extrai essa temática.
Desde criança sempre fui apaixonada pela Natureza. Brincava com as formigas.
Admirava-as pela competência de vencer obstáculos, pela força física insuspeitada e pelo exemplo de superação e organização.
Enfim, passava horas observando o vai e vem dos pequenos e grandes formigueiros que havia no quintal da minha avó. Mundos subterrâneos cheios de vida.
Também brincava com as nuvens. Deitava-me sobre a fria cerâmica hidráulica da varanda e via as nuvens formando figuras fantásticas, que lá do alto me contavam histórias.
Parte da minha infância foi urbana, parte foi nas proximidades da floresta.
Morei em Letícia, na tríplice fronteira Brasil/Colômbia/Peru, em plena floresta amazônica, de frente para o rio Amazonas.
Ali, naquele lugar fantástico, vi a chuva caminhar vindo da floresta trazendo o cheiro da terra molhada.
Adormeci com o barulho da água sobre o telhado de zinco. Ali ouvi histórias que só existem nas fronteiras, esses lugares de passagem.
Tudo isso encheu minha imaginação de folhas, flores, frutas, animais, sons e mistérios.
Tudo tem seu tempo de depuração. E o meu chegou depois da leitura de Walden ou a Vida nos Bosques, de Henri Thoreau, por acaso lido na tradução poética da minha prima Astrid Cabral.
Essa leitura me despertou para a necessidade de fazer algo em favor da preservação da Natureza em agradecimento por todos os prazeres e encantamento que ela me proporcionou na minha infância e que estava sendo destruída.
Quis que a minha filha soubesse o quanto é linda e importante a Natureza, o quanto ela é amável e generosa.
Fale-nos um pouco sobre Essa tal natureza.
Então escrevi Essa Tal de Natureza a mão e pedi que ela ilustrasse a história. Tirei umas 20 cópias xerox e fiz um lançamento com autógrafo e tudo para a criançada da vizinhança da nossa casa da Praça 14.
Anos depois, mostrei o “livro” para a minha amiga Terezinha Escobar, artista plástica mineira que estava de passagem por Manaus, que se encantou com a história e se ofereceu para ilustrar.
O livro aconteceu por obra e graça da Editora Valer, tornou-se meu best-seller e foi transposto quatro vezes para o teatro.
E de onde vêm a Sua majestade o Gavião Real e Cida – a macaca travessa?
Certo dia levei minha filha para visitar o Zoológico do Cigs [Centro de Instruções de Guerra na Selva, em Manaus], onde animais nobres da floresta cumprem pena de prisão perpétua sem haver cometido crime algum.
E foi ali que o olhar de um rei me deu motivo para escrever um outro livro.
O olhar do imponente Gavião Real, um rei da floresta deposto e prisioneiro me comoveu e me fez engajar em uma nova luta, dessa vez pelo direito da liberdade dos animais.
Assim, também se deu com Cida – a Macaca Travessa uma história real. Cida foi manchete durante vários meses em todos os jornais de Manaus, quando foi resgatada das mãos de traficantes de animais silvestres.
Abrigada em um instituto de pesquisas, ela foge e percorre vários bairros de Manaus criando confusão. Até aí é verdade, dali em diante é tudo imaginação da autora.
O livro Duas Histórias da Noite me parece um pouco diferente dos demais…
Um dos meus livros de cabeceira é Moronguetá, um Decameron Indígena de Nunes Pereira.
Leio e releio. As Duas Histórias da Noite são duas lendas recolhidas por ele, que eu reinterpretei em linguagem para o público infanto-juvenil. O livro em si é lúdico pois tem dobraduras interessantes.
Da sua lavoura literária também saiu a biografia de João Barbosa Rodrigues. Como chegou até as obras dele?
Em 2012 fiz uma viagem que mudou a minha vida. Foram 12 dias viajando pelo rio Negro até Barcelos, fazendo aquarelas de frutos, flores e folhas que íamos recolhendo nas paradas nas pequenas cidades do interior do Amazonas. Foi o meu primeiro contato, já adulta, com a floresta.
Um contato íntimo, pois o registro em aquarelas botânicas representou uma verdadeira interiorização de toda aquela beleza grandiosa.
Comecei a praticar e a estudar ilustração científica botânica em aquarela, atividade apaixonante, que me levou a tomar conhecimento da figura ímpar do botânico, naturalista e ilustrador João Barbosa Rodrigues, criador do Museu de Botânica do Amazonas.
Um gênio respeitadíssimo no meio científico nacional e internacional, cuja memória se perdeu no esquecimento da História do Amazonas.
Para sanar essa injustiça, pesquisei a sua atuação em Manaus e escrevi um livro em sua homenagem, do qual muito me orgulho.
Você tem como mensurar a recepção das suas obras?
Sou muito convidada para visitar escolas e falar sobre os meus livros para as crianças.
A sensação é sempre a mesma. Uma total e irrestrita admiração pelas professoras que usam de toda a criatividade para que as crianças celebrem o autor convidado e a arte da Literatura.
O livro é trabalhado de várias formas. A história é representada em desenhos, músicas, danças e teatro. Gostaria de ir mais vezes. Acho muito importante que a minha mensagem circule.”
Há algum projeto em andamento para crianças ou adultos?
Essa primeira viagem gerou um diário de bordo, pequeno livro artesanal intitulado Apontamentos de uma Viagem Filosófica pelo rio Negro . Fiz uma edição de 40 exemplares que circularam em um grupo restrito. Sonho com uma edição formal nem que seja para unir-me na literatura ao grupo seleto dos viajantes da Amazônia.
E a sua habilidade de ilustradora botânica, exerce-a também profissionalmente?
Em 2016 fiz uma nova viagem até uma reserva ambiental. Com essa nova visita consolidei minha carreira de ilustradora botânica diletante. Fiz um estudo de frutas raras do Amazonas que estão em processo de extinção e ganhei o convite de uma empresa para fazer um calendário.
Pois bem, o meu interesse pela botânica, a chamada “ciência amável” continua, pinto todos os dias, agora na quarentena, as plantas e flores da minha pequena varanda visitada por beija-flores.
Eis então, que ano passado, a convite do Professor Tenório Telles, fiz as ilustrações e a capa do livro Triádicos do poeta paraense João de Jesus Paes Loureiro.
Logo em seguida, ilustrei o livro A Cidade Perdida dos Meninos-Peixes, do poeta Zemaria Pinto. E agora, terminei de ilustrar um relato de viagem do poeta Thiago de Mello.
Há algum projeto literário em andamento?
Tenho um texto pronto de um novo livro infanto-juvenil com ilustrações feitas por mim, cujo título provisório é Sonho de uma noite de verão. A sair em breve, também pela editora Valer, meu livro O segredo da velha, ilustrado pelo artista plástico Jair Jacqmont.
Qual a sua reflexão sobre esse momento de pandemia?
Neste momento difícil em que o mundo de submete a provas físicas e espirituais tenho me refugiado na arte e na espiritualidade, dois alicerces da saúde mental.
Penso que a Natureza nos está cobrando um preço altíssimo pelas constantes agressões que lhe temos feito.
Isso em uma visão ampliada, pois a mudança forçada do comportamento humano também é, creio, efeito das agressões a nossa fauna e flora internas que formam o organismo humano.