Autor do livro O amazonês traduz “lockdown” para sossega-facho
Por Wilson Nogueira
O linguista Sérgio Freire, autor de O Amazonês (Editora Valer), disse, em entrevista a este amazONamazonia, que a pandemia da Covid-19 transmite, também, um pacote de novas palavras às línguas.
No caso brasileiro, tornou-se corriqueira a palavra inglesa Lockdown, para fechamento total, e a expressão fulano testou positivo para a Covid-19, quando o correto seria o teste do fulano deu positivo para Covid-19.
Desafiado a fazer uma tradução do Lockdown para o Amazonês, Freire destacou: “O governo deveria baixar logo um sossega-facho nessa gente”.
O professor explica que, apesar da repetição de novas palavras no noticiário da pandemia, não significa que elas serão incorporadas ao vocabulário dos falantes do português, porque […] ninguém empresta o que não precisa. A língua também”.
Para ele, a necessidade de comunicação da ciência com a população expõe que os cientistas são, no geral, péssimos comunicadores e que os jornalistas têm um papel fundamental na divulgação científica.
Freira se diz satisfeito com a repercussão de O Amazonês e que já prepara uma nova edição revisada e acrescida de ao menos 60 verbetes.
Confira:
O que significa a palavra Lockdown, para o senhor, neste momento em que a comunicação com a população com a população sobre o novo coronavírus parece tão confusa?
A linguística parte do pressuposto de que as línguas só emprestam de outras línguas aquilo que precisam. Palavras circulam com o campo semântico inteiro.
Foi assim no advento da informática, em que palavras como “delete”, “mouse” e outras foram recebidas junto com a tecnologia. “Lockdown” faz parte do pacote da Covid-19.
Outro empréstimo do inglês que veio no pacote é a construção “Fulano testou positivo para o Corona vírus”, que até então não existia na sintaxe do Português. Dizia-se “O teste de fulano para o Covid deu positivo”.
Qual a melhor tradução para Lockdown em Amazonês?
Uma boa tradução pra Lockdown seria Sossega-facho. “O governo deveria baixar logo um sossega-facho nessa gente”.
O estrangeirismo não causaria mais dificuldades de compreensão neste momento?
Sim e não. Sim, porque é uma palavra nova que vai ter de ser aprendida e como qualquer palavra nova leva tempo para a incorporação no léxico dos falantes. E não porque é uma palavra que vai ser muito repetida por conta exatamente da presença recorrente na mídia. E digo: ninguém empresta o que não precisa. A língua também.
Por outro lado, o governo do estado adota, ao menos na cultura, o vocabulário amazonês para sua comunicação, como o Fica na rede, Maninho. Isso lhe parece mais adequado para o momento?
Língua é identidade. Quanto mais a gente se identificar com o registro linguístico, mais tendemos a escutar e dar sentido. A questão aí é a dosagem para não ficar caricato e perder a mão na seriedade do assunto.
Cientistas, no geral, são péssimos comunicadores. Quando aparece um que consegue falar à população de forma clara, deveriam agradecer. E os jornalistas têm também um papel fundamental na divulgação científica. Transpor informação de um discurso a outro ainda é um desafio.
A ideia que os acontecimentos passam é a de que a população segue mais a orientação do leigo que a do especialista, no caso os cientistas. Os cientistas falham na sua comunicação com a população?
Essa é uma boa discussão no âmbito da divulgação científica. Cientistas falam, grosso modo, para seus pares. Os que decidem popularizar a ciência, como o Atila Iamarino, são mal vistos pela comunidade científica. É um grande equívoco.
Cientistas, no geral, são péssimos comunicadores. Quando aparece um que consegue falar à população de forma clara, deveriam agradecer. E os jornalistas têm também um papel fundamental na divulgação científica. Transpor informação de um discurso a outro ainda é um desafio.
Ainda neste contexto, não seria melhor uma comunicação vocabular mais direta com as mais variadas práticas linguísticas, ou isso seria um exagero?
Quando mais próximo do interlocutor for o registro linguístico usado, mais efetiva será a comunicação. Língua é igual roupa. Não se pode ir a um casamento vestido de Batman. Até se pode, mas isso vai gerar um efeito de sentido.
Assim como a norma padrão rebuscada tem um efeito na feira, ao comprar peixe. A ideia é saber qual registro, qual nível (padrão, popular, jargão) usar para tornar a comunicação mais efetiva.
O amazonês vem se popularizando por meio das artes, mais precisamente da música. E o livro, O amazonês também pega essa onda?
Na última década, vivemos uma revalorização do português oral amazonense, isso que a gente chama carinhosamente de Amazonês.
Passou-se de certo preconceito linguístico que associava esse registro com a baixa escolarização e com as populações mais pobres, com a língua do bodozal, para uma marca da identidade do amazonense. Simbolicamente, isso foi muito bom.
A língua, como traço identitário, já virou mercadoria e hoje estampa camisas e canecas. É uma valorização muito importante.
O senhor já está pensando numa possível atualização dessa obra?
Sim, estamos trabalhando na 3ª edição, revista e ampliada.
Serão acrescidos em torno de 60 verbetes.
O senhor recomenda O Amazonês para a grade curricular do ensino fundamental e médio do estado?
Nascemos com a oralidade. É a língua de fábrica. O nosso falar é um bem que toda criança amazonense recebe de graça, ao conviver socialmente.
Mas precisamos de um outro registro linguístico para circular socialmente: o português padrão, que é a língua de investimento, dos livros, dos jornais.
E a criança só vai aprender esse registro padrão em um lugar chamado escola. A função da escola, portanto, é instrumentalizar o aluno com o registro padrão da língua portuguesa para que ela possa circular de forma socialmente aceitável com a linguagem de prestígio.
Agora, aí entra uma questão metodológica: instrumentalizar o aluno na língua padrão não é ensinar gramática. É ensinar uso.
E nessa hora é inteligente o professor que faz uso da linguagem oral que o aluno já traz de casa para a escola para fazer a transposição da linguagem oral, que o aluno já tem, para a língua portuguesa padrão, que ele precisa aprender.
Há alguma relação entre memória coletiva e a forma como ela é registrada. Digo: os livros [de um modo geral] dão conta da memória forjada nas diversas falas?
Língua é história. Ela é uma fotografia do seu tempo. Por exemplo: quando era criança, usava-se muito a expressão “cortar a curica”, no sentido de “cortar o barato”. “Eu pensei em jogar bola, mas minha mãe cortou minha curica e não deixou”.
Essa expressão muito usada pela minha geração caiu em desuso porque brincar com a curica, o papagaio de jornal feito sem tala, praticamente desapareceu. Os livros e a arte têm a função de registar o seu tempo. Daí a importância da cultura para a memória coletiva.
Quais os impactos da internet na Torre de Babel contemporânea? Melhor: A Internet vira ser a Torre de Babel? Então, quais seus impactos na complexidade linguística?
Penso que a Internet surgiu como mais um terreno onde o sujeito exercita a linguagem. Cada espaço da internet, cada rede social, tem seu modo de formulação.
Do ponto de vista linguístico, isso é mais enriquecedor do que problemático. Amplia a riqueza da língua, por um lado, ao mesmo tempo que requer o domínio de outro tipo de registro de linguagem. É preciso ser poliglota na própria língua, como diz Evanildo Bechara.