No Festival Literário Internacional da Floresta em Parintins, em 2009, um jovem poeta e declamador chamado Rodrigo Bit, também Bit Rabiscador, chamou a atenção dos poetas amazonenses Tenório Telles e Dori Carvalho.
A versão master do Fliforesta foi realizada em Manaus (AM), em 2008, pelo grupo editorial Valer, com a participação de escritores brasileiros e mais de 60 de outros países. Nos anos seguintes houve vários desdobramentos do evento nas cidades amazonenses, nos quis os talentos artísticos locais puderam se expressar.
Dori e Tenório observaram que a poesia do Rabiscador surpreendia leitores e ouvintes pela força dos seus versos forjados no barro do mundão mundano e sagrado da existência humana.
Com os rabiscos do Bit, a poesia não se acomoda em formas ou conceitos; ela é puro movimento de ideias em palavras enviesadas que não têm outro fim senão o da provocação da reflexão sobre as incertezas da vida.
E essas palavras se enviesam ainda mais quando ecoam da boca do poeta – e se articulam aos meneios corporais – em suas performances, porque elas adquirem força e eloquência espiritual. Poetizar, para esse menino poeta, é viajar sempre sem rumo definido pelas galáxias das palavras.
Mas afinal quem é Rodrigo Bit, o Rabiscador?
Confira a entrevista:
Você pode revelar a verdadeira identidade do Rodrigo Bit, o Rabiscador?
Não. Eu poderia até tentar, mas incorreria na incerteza de que estivesse revelando ser verdade ou revelando a verdade do Rodrigo de Souza Rocha sobre a identidade do Bit Rabiscador.
Até porque identifico no Bit uma diversidade de traços (calculista< – >espontâneo, transparente< – > enigmático, pacifista< – >provocante, racionalista< – >instintivo, atrapalhado< – >organizado, atencioso< – >esquecido, parceiro< – >solitário, pessimista< – >esperançoso, tímido< – >extrovertido, depressivo< – >alto astral, louco< – >equilibrado, e por aí vai: num ser só).
Eu disse que nem tentaria e acabei ousando, mas realmente não tenho certeza nem da minha incerteza. (rsrsrs…)
O que com certeza posso revelar sobre o Bit. é o que sei. Enquanto palavra, ele me surgiu em 1996, na escola, como abreviatura de Bitencourt.
Este foi meu primeiro sobrenome até setembro de 1999, depois de ganhar um concurso nacional de redação e quando muita gente já me chamava pela abreviação.
A partir daí, o Bit. se libertou do ponto depois do t e o Rodrigo Bit assinado no final dos rabiscos e das cartas para as meninas virou nome artístico e, concomitantemente, foi se configurando como uma espécie de personagem.
É isso.
Noutra ocasião contarei viagens sobre essas três letrinhas e as vivências viajantes do Bit.
Quem é esse cara que está por trás da personagem?
Eu, Rodrigo de Souza Rocha, sou um cara geralmente tranquilo e aberto ao diálogo. Procuro não causar as contrariedades do amor aos meus familiares e estar de boa com as amizades, colegas e conhecidos.
Gosto de futebol e, para não correr o risco de ficar me achando, costumo beber com certa frequência e, também, deixar as coisas para cima da hora.
Em termos de arte e de comida, aprecio tudo que chama a atenção em forma e conteúdo, só evito encher o bucho e a cabeça com besteiras.
Ainda penso ser revisor de textos literários e ajudar mais novos escritores. E por fim, sou muito grato ao Bit, que se não fosse ele, talvez eu seria um totalmente sem futuro ou um bitolado pelo sistema.
Por que criar uma personagem?
A resposta é mais uma reflexão posterior do que uma justificativa do processo criativo do Bit (enquanto personagem).
Em Juruti-Velho/PA, apesar dos meus pais-avós já serem bem rigorosos, eu ainda conseguia um pouco de liberdade: remando pra chegar à vila antes do filme começar, pescando caratinga, pulando n’água, ajuntando mucajá e jutaí no terreno dos outros, brincando na imensidão da praia.
Mas em Parintins, a maior liberdade era viajar nos universos dos livros escolares. Ah, se tivesse grana teria virado um leitor mais assíduo. Depois, o ato de rabiscar foi passando a ser a principal liberdade.
No entanto, eu queria mais.
Aí eu já era um pouco mais solto, descolado e havia até me tornado vocalista, guitarrista e letrista da minha banda de rock imaginária.
Mas foi só em 2005, em eventos de militância cultural, estudantil e política, após voltar da fuga para Brasília(DF), que o Bit foi me surgindo como personalidade.
E respondendo, acho que ele surgiu para enfrentar, no meu lugar, o receio de me expor em público que a falta de liberdade fez agigantar em mim e para tentar me equilibrar na linha tênue entre o centro e a margem dos antagonismos do mundo.
A poesia do sujeito e não da personagem seria diferente? Ou não haveria poesia?
De certo modo a vida do sujeito acaba sendo também atuação no imenso palco do mundo da existência. Né?
Neste sentido, no perfil no rede social Facebook, o Rodrigo é o sujeito simples e com inquietudes sobre o como é e ideias de como poderiam ser as coisas; o Rabiscador é aquele eu que rabisca sobre tais inquietudes e ideias; para o Rodrigo, o Bit é aquele da nossa turma de amigos que interage mais espontaneamente com o mundo, e ao Rabiscador é o seu eu lírico guia; e em si, é quem materializa os rabiscos em leitura dramática, poesia falada e performática.
Acho que se não existisse o desprendimento que é o Bit como personagem, talvez até houvesse rabiscos, mas ninguém diria “Esse é o Bit!”, porque não teria a impactância de falas encarnadas e performances bitianas.
Quais os temas preferidos do Bit?
Os temas preferidos do Bit são os universais, principalmente, discorrências sobre injustiças/desigualdades sociais impregnadas nas vivências cotidianas e em consequentes imagens.
Outra coisa indiretamente assuntada nos rabiscos do Bit é uma espécie de manifesto que ele ensaia teorizar na prática.
Sem influência profunda de nenhum pensador da linguagem, ele vê a valorização, o uso constante e a defesa das variedades linguísticas como instrumento de aproximação, convivências de léxicos, sotaques e falares, e possível entendimento que se bem intencionados pode contribuir no enfrentamento às injustiças/desigualdades sociais.
Além de poeta, o Bit também é um ator. Como compatibilizou essa relação?
Como já transpareceu nas respostas anteriores, eu acho (rsrsrs), o Bit também é um ator em constante atuação de si mesmo, ainda que ele não esteja compartilhando falas e performances dos rabiscos, volta e meia, mais do que etílico, precisa ajudar o sujeito Rodrigo de Souza Rocha a interagir nos círculos de convivências diversas.
E completando a resposta anterior, talvez o Rabiscador não existisse sem o Bit.
Quando escreve a poesia, o Bit já está pensando, também, na performance?
Sim e não. Na performance do ritmo, tom e postura da voz na leitura dramática e/ou na fala sem o papel ou outro suporte em mão, sim, e não só penso, a maioria das vezes ponho em prática pra sentir melhor o que está fluindo na rabiscação.
Já os movimentos, expressões faciais e corporais, trejeitos, mesuras e tiques, eles geralmente fluem mais quando estou concentradamente recluso para uma apresentação ou surgem espontânea e até ineditamente, assim versões de falas diferentes dos rabiscos originais, ao longo do compartilhamento em público, e agora até virtual.
Quais espaços você usa para se realizar como poeta?
Uso espaço diversos: a rede no quartinho dos fundos de casa improvisado como biblioteca/escritório; a mesa da cozinha nos intervalos da refeições; a janela da frente e, fora dos tempos de pandemia, a nossa calçada, ambientes cedidos na escola, o encosto nas raízes das arvores em frente ao Sagrado, as praças de Parintins, as ruínas da Casa da Cultura, mesa de bar, e em viagens de barco, caiçaras, mesa de barzinho, redes sociais virtuais, e por aí vai. (rsss)
E a prosa? Lembro que você – ou o Bit – estava escrevendo uma prosa chamada Quitéria, a bactéria. Como está esse projeto?
É assim que ficou conhecida e é lembrada por quem ficou sabendo dela. Mas na verdade, o título é Microsseia que, fazendo respeitosa alusão a saga de Odisseu, narra, em princípio, aventuras e desventuras do insignificante Bio com a Quitéria, depois com os amigos e, na sequência, sua parceria com o insigne Laicos, em busca do reencontro com a Quitéria, e ao mesmo tempo com narrador, autor e com o próprio sujeito Rodrigo de Souza Rocha.
Bit e Laicos: respectivamente, em micróbio e humano, transfigurações do Bit. Essa narrativa curta está inconclusa, como estão também outros textos.
Uma novela sobre um cara que vive um inenarrável rodar o mundo procurando uma cunhatã que ele conheceu na Praça da Liberdade, ao cair de uma intensa tempestade, vivendo um instante de amor total, e eles só conseguem se reencontrar já velhos na mesma circunstância espaço/temporal.
O romance Memórias de um ser complexo, que discorre sobre um adolescente que acorda muito machucado, quase morto, no meio da floresta amazônica sem memória.
Depois de muitas vivências e antes de ser morto, lhe dão um dia para fazer o que quiser, só não podia tentar fugir.
Então ele passa todas essas horas rabiscando suas memórias. E quando [seus algozes] já estão vindo, põe elas num saco plástico grosso e joga no rio para que as correnteza as levem e, a pedido dele, sejam publicadas por quem vier a encontra-las.
E adivinha quem encontrou?
Outro romance, que está só na ideia é o Centro, que é uma viagem do Bit sobre a substancialidade da nossa farinha de mandioca e um pouquinho de coisa que esse rico universo cultural implica para nós, amazônidas.
Há ainda os rascunhos de um documentário com pitadas poéticas sobre a pesca com caniço e linha comprida para consumo próprio, intitulado A arte de fisgar.
Como a perda da sua avozinha afetou a sua vida?
Antes mesmo da perda, quando mãe-avó Lurdinha foi ficando mais velha, as doenças foram se intensificando e deixando-a muito dependente doutras pessoas, em especial. Foi o momento de retribuir mais do nunca os cuidados que ela teve comigo desde os meus nove meses de idade.
Apesar das durezas diversas, foi um momento que me fez praticamente zerar minha atração por situações até determinado ponto irresponsáveis e inconsequentes, e passar a estar mais equilibrado e bem prestativo para com ela e com todos.
Um tempo antes da perda, até me mudei para o quarto da mãe-avó.
Sobre a perda, não tenho tanto sentimento de culpa nem de cumplicidade pela possibilidade de nós, da família, termos feito de tudo para tentar tê-la viva por mais tempo.
Mas, eu procurava ficar tão atento aos chamados dela, que até hoje, dormindo ou acordado, ainda imagino às vezes ela estar me chamando.
Conte-nos um pouco sobre a sua vida familiar.
Ainda que não seja tão desconhecida, minha família é discreta, mais caseira, mas não tão reservados. Eu sou descendente da mistura de pai paraense com mãe amazonense.
A família toda do meu pai é de Juruti-Velho/PA, onde passei minha infância dos dez meses aos doze anos, gosto muito [de Juruti] e pretendo passar meus últimos dez anos por lá.
Já a minha mãe é mistura de família materna da Ilha do Chaves com pai parintinense (eu acho), Álvaro Faria, o famoso Bandalheira (mais não tenho tanta afinidade com essa parte da minha genealogia).
Sou o mais velho de sete irmãos. Criado pelos avós paternos, assim como também foi pelos avós maternos a minha mãe Keila (a biológica).
E tenho uma amada, a Thyeyda Simas, e três filhos, até então; a Alana, que também ajudou no início do meu equilibrar-se no mundo e mora com a mãe em Manaus; a Isabelle, que tem um gênio forte, minha filha desde um ano de idade, da qual também gosto muito; e o hilário Rodrigo Simas Rocha, o Buchoso, o Bit Filho, que é quem mais está me ajudando a ser alguém melhor em tempos de distanciamento social. Ele é muito poético e já rabiosca [rss]
Quais são os seus poetas preferidos?
Carlos Drummond de Andrade, Ferreira Gullar, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa e Bertolt Brecht.
E a sua poesia preferida, das suas?
Por enquanto, não tem como ser outro, o meu rabisco single: famintos. Este, assim como a narrativa curta microsseia, também é conhecida por outro nome: bicho. Porque é impactantemente simples. Ao mesmo tempo, atemporal, original e inovador.
O bicho necessita superar suas fomes diversas em qualquer espaço/tempo, os versos dos rabiscos podem ser organizados em parágrafos de texto prosaico, sua performance nunca repete o mesmo final e não consigo enxergá-lo apenas como um poema.
Para mim, ele é também meio crônica, meio conto, meio mini-novela, meio micro-romance, meio monólogo, e por outro lado, meio não literatura, meio roteiro de curta-mentragem, meio jornalístico: e até meio não meu, pois viajo na ideia de que ele é praticamente domínio público pelo tanto que já fora apresentado pelo Bit e difundido pelas pessoas impactadas por ele.
É isso, parceiro. O Bit viaja. Né? [rsrs]
famintos
um bicho que não mora no fundo do rio
nem vive embrenhado nas matas
mas pisando no asfalto entre muros e fachadas
um estand’arte tremulante
ao relente
bicho medroso… corri do pau!
do paulo corrêa entre murros cacetadas e facadas
na ponte do homem, enquanto era revistado pelos zomi
olhei pra pasargada e pensei na outra
na do bandeira, a verdadeira
– quanto vale a utopia, bicho?!
na praça dos bois, quase virei capim
pisoteado por bípedes
na praça da liberdade, quase tiraram-na de mim
– qual é a sua, bicho?!
em frente ao sagrado, o profano
avistado pelo homem santo digital pisando em cima do totem de metal
desnorteado no norte, matei minhas eternas esperanças
fumando minhas amargas reminiscências
na praça eduardo ribeiro, sem dinheiro
sem a dignidade dos moto-taxistas e tricicleiros
o bicho berrou por míseros trocados. nada!!!
trêmulo desci ao píer digital
olhei pra praça dos comunas
mas eles não a frequentam mais
olhei pros bacanas digitais acima e se perguntou
– quem inventou os degraus sociais?!
ficou avistando os barcos no beiradão
dududu pra lá dududu pra cá
levam e trazem, trazem e levam…
grana, dívidas, dúvidas
alimentos, lamentos e doentes
cansado, muito cansado da vida, bicho!
fiz muito coisa boa e muita coisa errada
só não aprendi a ser gente
a hipocritamente ser gente
ninguém valorizou o bicho que fui
fui muita coisa errada, mas também muita coisa boa
por que me destruí?! nunca respondi
nunca soube responder! não tive tempo
tempo pra mim, tempo como sinônimo de oportunidade
quando comecei a infringir as leis
logo taxaram-me
vagabundo!
desocupado! marginal! ladrão! maconheiro!
nunca me perguntaram quantas vezes por mês vou ao cinema
se já fui ao teatro e/ou ao museu alguma vez na vida
quantos livros eu leio por ano
e meus filhos, assim como eu, não sofrem diariamente fomes
fomes fomes e mais fomes
além das de comida…, as faltas de alimentos pra cabeça
cansado de ser bicho, e antes que eu enlouqueça,
lanço-me ao corpo do rio
o nome do bicho era zé, mané, lelé,
só mais um como outro faminto qualquer
que as correntezas avarentas da vida levam o brio…
[final sempre novo]
mas que momentos como este de
de entrevista com bit
trazem-no de volta
com toda beleza
com todo vigor
com toda espontânea
boa loucura e pureza
com todo amor
rodrigo bit (2010, perambulando por parintins)