Os haikais de Cacio José Ferreira [Por Walter Guarnier de Lima Júnior*]
Em Inocente céu de cinzas: reflexos de haikais (Valer), Cacio José Ferreira resgata, de modo bastante singular, um antigo e tradicional gênero poético japonês: o haiku, que após sua chegada ao Brasil, no início do século XX, popularizou-se como haicai. Composto pela junção de dois termos, “hai” (brincadeira) e “kai” (realização), é um poema curto, dividido em três versos, com 5, 7 e 5 sílabas poéticas.
Esta valiosa obra é uma grande homenagem à poesia, ao Brasil e ao Japão; estes dois últimos, em especial, são panos de fundo para ricas reflexões. Como nos alerta o eu lírico, em um dos poemas: “A mente rabisca a imagem. / Haicai quer nascer!”. E nasce, com a exuberante beleza dos ipês brasileiros e com a renovação e sentimento de esperança anunciados pelas cerejeiras japonesas, por meio de imagens engenhosas e potentes, que, sem sombra de dúvidas, são o ápice do texto.
Do lado ocidental: igarapé da Amazônia, sol de agosto, amanhecer, entardecer, pingos d’água, chuva, muita chuva, arco-íris. A referência à natureza é feita por meio de um termo de estação, kigô, palavra japonesa relacionada a uma espécie de entidade natural capaz de desencadear, a partir de uma cena concreta, associações afetivas de modo econômico. O homem, com todos os seus conflitos existenciais, parte integrante da natureza e consequentemente submisso a ela, torna-se, também, tema de haicai.
Do lado oriental: orla de Kagoshima, vulcão, luzes, lavas, fina chuva, nuvens de pó. Por meio da objetiva descrição de uma física sensação (visual, auditiva, olfativa, paladar e tátil), o haicai brasileiro de Cacio José aproxima-se da fotografia. “Figura turva toma forma. / Memória fugidia é encontrada”, apenas os leitores mais atentos serão capazes de “decifrar” as entrelinhas desses enigmáticos versos. Arrisquem-se, lancem-se! A experiência, com toda a certeza, será inesquecível.
Pela escrita de Cacio, Matsuo Bashô não só passa pelo igarapé amazônico, personifica-se em Curupira, reconhece, reverencia autor e obra brasileiros. Momento, memória e imagem constituem uma sutil chave de leitura do texto: Brasil, Japão, Brasil… Captura do momento, captura do instante. Os temas e problemáticas levantadas não se esgotam apenas no ir e vir, entre Brasil e Japão, entre o momento e o instante; pelo contrário, são corajosamente levantados, ainda, temas como: família, classe, sexualidade, religião. Por que não?!
A simplicidade do gênero, a sensibilidade do autor e a profundidade da reflexão serão as camadas que os leitores atentos terão que atravessar. A travessia, porém, exigirá empenho; mas, sem dúvida, será bastante intrigante e prazerosa. As ilustrações produzidas por Josiney Encarnação são a “cereja do bolo”; uma suculenta cereja com características asiáticas, é claro, para dar ainda mais leveza e sabor à leitura da obra. A cada página uma surpresa, perfeita fusão entre a arte dos desenhos japoneses e a criatividade poética brasileira.
*O autor é Doutorando em Estudos Literários (Universidade Federal de Uberlândia – UFU/MG) e Professor do Centro Universitário IESB/DF.
Este texto está na orelha da obra