Luiz Bacellar, o poeta amazonense que encanta gerações
Na data de hoje(4/09), em 1928, nasceu, em Manaus (AM), Luiz Sá de Franco Bacellar, um dos mais expressivos poetas amazonenses. Em 1959, Luiz Bacellar conquistou o Prêmio Olavo Bilac da Prefeitura do Rio de Janeiro, cuja banca de jurados estrava composta por Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Seu livro de estreia, Frauta de barro, está na 9.ª edição e é hoje um dos clássicos da literatura poética amazonense. Para homenageá-lo, republicamos esta reportagem da jornalista Michelle Portella sobre o Frauta de barro, e a crônica Um caminho sem volta, da jornalista Lúcia Carla Gama, ambas veiculadas pela revista Valer Cultural, do Grupo Valer, em abril/2012.
O livro de estreia do poeta membro do Clube da Madrugada, Frauta de barro, chega aos 53 anos da conquista do Prêmio Olavo Bilac da Prefeitura do Rio de Janeiro, um dos mais importantes do país, com fôlego dos grandes clássicos da literatura brasileira.
Em 1963, foi publicada a primeira edição. No ano passado, Frauta de barro ganhou uma publicação comemorativa da Editora Valer, em sua nova edição. O tempo, marcado por sucessivas edições, marca a primeira obra de Bacellar com um dos expressivos clássicos da literatura amazonense.
O livro, que é uma balada, revela, simbólica e poeticamente, a vida em Manaus nos primeiros anos 1950, quando o mundo vivia o pós-guerra e a capital amazonense respirava os conflitos sociais da humanidade, motivados pelo crescimento da indústria e da urbanização.
Em Manaus, surgiam novos bairros, novas formas de trabalho, novas habilidades técnicas, novos amores e pecados.
Mais do que qualquer outro aspecto, salta aos olhos a leitura do poeta sobre experiências vividas no Bairro dos tocos, o bairro de Aparecida, como atualmente é denominado. Para muitos especialistas na obra de Luiz Bacellar, essa presença se consolidou com um tributo épico ao lugar.
“Eu me reportei aos aspectos mais humanísticos da comunidade, os apelidos que os moradores davam aos recém-chegados, os nomes dos becos que acabavam sendo adotados por todos no bairro”, diz Luiz Bacellar.
Bacellar nasceu em Manaus no dia 4 de setembro de 1928, na rua Saldanha Marinho, na casa dos avós maternos. Passou a infância em Manaus e concluiu o colegial em São Paulo.
Mais tarde, no Rio, foi bolsista do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), no Curso de aperfeiçoamento de pesquisador social, na área de Antropologia Cultural, no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, sob a orientação do professor Darcy Ribeiro.
De volta a Manaus, exerceu a função de jornalista, foi portuário, comerciário, professor de Literatura e Língua Portuguesa no Colégio Estadual Pedro II e professor de História da Música no Conservatório Joaquim Franco, da Universidade do Amazonas.
Envolvido com o movimento cultural, sua atividade literária se intensificou.
Por volta de 1954, juntou-se a um grupo de jovens militantes que viria a se autodenominar Clube da Madrugada, lançando-se à carreira literária com Frauta de barro.
Em 1959, sua namorada o inscreveu no Prêmio Olavo Bilac, conferido pela Prefeitura do antigo Distrito Federal (Rio de Janeiro).
Pelas mãos do júri formado por Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, Luiz Bacellar recebeu um dos prêmios mais relevantes do país.
“Não que eu fosse moleque de rua, mas o que me chamou a atenção foi o aspecto tragicômico da obra. Caiu no gosto”, avalia Bacellar.
Assim como Frauta de barro, editada oito vezes e uma nona será publicada pela Editora Valer, o segundo livro do poeta, Sol de feira, que tem inúmeras edições, alcançou notável sucesso, inclusive, recebendo o Prêmio de Poesia do Estado do Amazonas, em 1968.
O poeta é um dos estudiosos do patrimônio artístico e cultural da cidade de Manaus, onde vive e trabalha, também com grande interesse pelas artes.
Luiz Bacellar também é autor de Quatro movimentos (Manaus, 1975), O Crisântemo de cem pétalas (em parceria com Roberto Evangelista, Manaus, 1985), Quarteto (Manaus, Valer, 1998) e Satori (Manaus, Valer, 2000).
Em Satori, o escritor Tenório Telles define assim a obra do poeta amazonense: “Luiz Bacellar faz parte de uma linhagem de poetas comprometidos com a revelação dos mistérios do mundo, com a essencialidade das coisas e dos seres. Tendo na musicalidade uma de suas marcas definidoras, sua poesia é prenhe de imagens, de ressonâncias filosóficas e espirituais. A acuidade no tratamento dos temas e o apuro da linguagem são expressivos da excelência de seu fazer poético”.
“Ser Bacellar é ser um artesão da palavra”
Há que se questionar, então, porque obras de tamanha importância, como as de Bacellar, não alcançam a almejada popularidade dos best-sellers. De onde vem o gosto pela leitura? Haveria prazer no ato de ler? De qual prazer se fala, quando se fala no prazer da leitura?
Ler é o ato que precisa de outro para reconhecer e legitimar sua inauguração, tanto de alunos quanto de mestres.
Certamente não existem respostas – nem existirão – na medida de cada um desses e de outros questionamentos.
Mas é certo que o professor, em sala de aula, pode atiçar os alunos a tentar respondê-las de modo persistente, a partir de fatos e histórias mais próximos do ambiente em que vivem.
Assim, ele estimulará o conhecimento pela pesquisa e contextualização da sua realidade.
No caso da poesia, mais do que usá-la somente para trabalhar os conteúdos da série, o professor pode introduzir palavras novas e completar o aprendizado da leitura e escrita. Os poemas de Luiz Bacellar também apontam para essa possibilidade.
A professora de Literatura Brasileira Francisca de Lourdes relata a sua experiência com alunos do 6.º ano do Ensino Fundamental com a obra de Luiz Bacellar, especialmente com Frauta de barro e Sol de feira.
Inicialmente, ela explora a leitura silenciosa e oral do poema, depois destaca os recursos sonoros e as rimas.
“Em Frauta de barro, o poeta é pura sinfonia. Há uma carga poética que sobrevém dos elementos sonoros que impregna o texto poético. Nesse livro, a lírica de Bacellar se expressa como um canto de saudade de infância que exala por toda obra. Temos, no entanto, poemas com muita malícia, como Soneto do isqueiro e Soneto da caixa de fósforos, e por aí vai… É preciso, portanto, entender o jogo de ideias que o texto oferece ao leitor; se ingênuo, cai na armadilha; se esperto, logo entende. É uma descoberta da sedução erótica que transpira pela palavra evocada, isso é literatura. Subterfúgio”, explica.
Segue-se à exploração inicial, uma conversa com as crianças acerca do autor, para demonstrar que essas informações se articulam com as de outras disciplinas, como História e Geografia, sem perder o sentido estético e o ritmo das baladas.
De quebra, Francisca aguça a autoestima e a memória afetiva dos alunos, quase sempre massacradas por informações alheias ao cotidiano deles.
“A mim é só satisfação fazer com que os alunos percebam que nós temos grandes autores, e que o grande autor não é só aquele que publica no Sul. O grande autor é aquele que também publica aqui e fala dos problemas daqui, transgride com lucidez o dia a dia. Ser Bacellar é ser um artesão da palavra com muito rigor e apuro formal”, avalia Francisca de Lourdes.
Atuação do professor
Nos trabalhos finais de sexto período, eles analisam um escritor e três obras desse autor. O resultado é quase sempre de superação da barreira da estética.
“Isso me surpreende, pois, ao final, ouço-os dizer que valeu a pena. Isso faz o diferencial com nossos alunos. Sei que não é muito, mas esse pouco representa bastante para quem poderia chegar à universidade sem conhecer quase nada”, afirma a professora Francisca de Lourdes.
Ela ressalta, entretanto, que o professor precisa se empenhar para conhecer as obras dos escritores locais e assim levá-los para a sala de aula.
“Muitos professores relutam em usar obras de autores amazonenses em aulas de Literatura por desconhecê-las. Por isso, nossos autores não são lidos. Os professores teriam menos trabalho se antes de indicar aos alunos uma obra fossem eles mesmos os leitores para poder dialogar com o texto e com os alunos”, sugere.
Quanto à estratégia a ser adotada em sala de aula no ensino da Literatura, Francisca assegura que cabe ao educador sempre se questionar se sua atuação é eficiente e orientada, se está estimulando o aluno para que ele sinta prazer em ler um clássico da literatura.
Um caminho sem volta
Por Lúcia Carla Gama
Eu era pouco mais que uma menina que seguia a pé do bairro Aparecida para o Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, na rua Silva Ramos.
Peito em ebulição pela passagem da infância para a adolescência, quando fui apresentada à poesia de Luiz Bacellar.
Foi a professora de Literatura Brasileira Vânia Pimentel que deu a mão a mim e a minha turma do primeiro ano do então segundo grau e nos conduziu num passeio sem volta pelos caminhos do autor de Frauta de barro.
Num primeiro olhar, é verdade, entendi pouco o escrito daquelas páginas, tendo descoberto, graças ao livro, que não há erro de grafia no título e frauta: nada mais é do que a variação da palavra flauta, substantivo feminino.
Mas assim que a leitura seguiu atenta, houve encantamento com a teia de escritos tecida com simplicidade pelo poeta amazonense que nos apresenta o cotidiano, a cidade, os costumes e a si mesmo.
Na obra, Bacellar, como afirma a poetisa e acadêmica Astrid Cabral, assume nominalmente a importância da música na gestação de sua poesia.
Já no prólogo opta pela simplicidade, quando alude ao fato de ter achado em menino ‘um frio tubo de argila’ e ao se pôr a soprá-lo ‘rude e doce melodia’ ‘jorrou límpida e tranquila/ como água por um gargalo”.
Astrid continua: o autor refere-se também ao tom faceto e gaiato e a saudade dos longes da infância. “Tudo volta do monturo/ da memória em rebuliço/ Mas tudo volta tão puro!…” E antes de contar a Manaus dos seus primeiros anos, Bacellar fala das vestes do poeta: “E sobre
a cambraia fina/ da camisa de neblina,/ o arco-íris em gravata/ vai atado em nó singelo”; e dos objetos de todos os dias, com suas funções específicas, como em “Soneto do relógio de bolso”, lembram-me célebres vultos/ teus ponteiros nessa dança:/ Dom Quixote o dos minutos/ e o
das horas Sancho Pança.
Aliás, ao falar dos pequenos objeto diários, o poeta consegue a incrível façanha de escrever uma espécie de crônica em dois quartetos e dois tercetos, a métrica do soneto, produzindo textos deliciosos de ser lidos e recitados numa espécie de jogral, como fiz nos tempos de
colégio cumprindo tarefa passada por Vânia Pimentel. Vide os versos iniciais de “Soneto do chaveiro”: “Nessa argola de segredos,/ nesse aro de seguranças,/ o balé das minhas chaves/ dança niqueladas danças”.
Neste capítulo específico, Bacellar, segundo Astrid Cabral, cheio de argúcia, simplifica o soneto, reduzindo-o à métrica da redondilha, redimensionando-o, portanto, ao tema: miúdos objetos como lenço, canivete, caixa de fósforo, lápis, chaveiro etc.
Mas é quando escreve sobre a Rua da Conceição, em “Balada da Rua Conceição”, ou em “Ciranda à roda de um tronco”, ou, ainda, em “Beco do Pau-Não-Cessa”, que o poeta testemunha a Manaus em que nasceu,
cresceu e ainda mora, mas que já não existe mais. Porque o tempo passa e com ele surgem as transformações físicas e comportamentais da metrópole: “Vão derrubar vinte casas/ na Rua da Conceição./ Vão derrubar as mangueiras/ e as fachadas de azulejo/ da Rua da Conceição. E O Beco do Pau-Não-Cessa/ há muito que já deixou/ de ser beco de arrelia,/ hoje é um bem-comportado/ beco da Paz e Harmonia”.
Seguindo por estes escritos, Bacellar expõe curiosas e intrigantes histórias que formam a população e os costumes da cidade onde ajudou a fundar o revolucionário Clube da Madrugada movimento de reforma cultural de 1954.
O poeta escreve sobre Chiquinho das Alvarengas: “Chiquinho das Alvarengas,/ rico e gordo, gordo e rico,/ Creso de muitas arrobas, achatador de penico, conta um crime passional em Romance do Esquartejado: Depois, com a ponta da arma/ lhe espetando nas costelas/ o marido a obrigou/ que cortasse com o terçado/ braços, pernas e a cabeça/ do tronco do Alferes nu”. Registra em versos a história de Etelvina, a santa baré, estuprada e morta que, dizem, teve a virgindade recuperada por milagre: “Dizem (suave mistério!)/ que o corpo ao ser enterrado,/ recompôs-se dos sinais/ daquela violação”.
Não poderia faltar nesta poesia feito crônica de uma cidade que ficou lá atrás e que continua tão igual o “Torneio de papagaios”: “flechadas colhidas/ bruscas descaídas/ brandas empinadas/ quedas embiocadas/escudos rompidos/ dos famões vencidos/ desta imponderável/ ágil livre frágil/ heráldica aérea”.
E a “Receita de tacacá”, que dá uma suadeira doida tomado nesse calor amazônico: “sirva fervendo, pelando/ o caldo do tucupi,/ depois tempere a seu gosto:/ um pouco de sal, pimenta-malagueta ou murupi”, assim como os nomes das paróquias da cidade da época em que Frauta de barro foi escrito, na década de 1950.
“Aparecida seja paróquia ou piroca/ tudo vem a dar no mesmo/ pros padres redentoristas.
Na parte final do livro, o poeta tão cotidiano se revela maior que todos os dias, que a cidade, e fala de sentimentos e sensações, como em “Porta para o quintal”: “quais velhinhas comadres; nos varais/ a roupa brinca de navios de velas/ minha infância reinventando –, “Finis gentis meae”. Mas logo vem a Noite e, de mansinho,/ envolve em véus e guarda no escaninho/ da raça o resto e o pó que somos nós; ou em “Noturno no bairro dos Tocos”: “Há tanta angústia antiga em cada prédio!/ Em cada pedra nua gasta. E agora/ em necessário pranto que demora/ o amargo verso vem como remédio”.
Ao fim, Bacellar revela o homem que é em “Duas canções”. “O átrio todo se assombra/ da luz que nunca brilhou: aquela ilusória sombra/ do que eu não era passou”; e na homenagem que faz ao grande ator inglês, em “Soneto a Charles Chaplin”: “Se o teu poder de riso nos subjuga,/ o teu poder de lágrimas, por fundo,/ se faz em claridade. E lava o mundo”.
E lendo Frauta de barro, uma quase menina, depois mais adulta e hoje perto dos quarenta, descobri que a maravilha deste poeta, que ainda anda pelas ruas de Manaus com um bengala nas mãos, está na simplicidade da escrita; no olhar sobre o cotidiano que nos simples detalhes forma a vida.
Luiz Bacellar morreu em 9 de setembro de 2012, em Manaus (AM).
Excelente matéria! Inclusive, a Editora Valer e o Instituto Cultural Brasil-Estados Unidos – ICBEU irão promover o lançamento do livro Luiz Bacellar e sua poesia do autor Elson Farias, no dia 9 de setembro de 2020, quarta-feira, às 18h30, na galeria do ICBEU. Para o evento serão adotadas as medidas de segurança: máscaras, álcool em gel e distanciamento social. Todos estão convidados.
Raquel Caetano.