Eu era pouco mais que uma menina que seguia a pé do bairro Aparecida para o Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, na rua Silva Ramos.
Peito em ebulição pela passagem da infância para a adolescência, quando fui apresentada à poesia de Luiz Bacellar.
Foi a professora de Literatura Brasileira Vânia Pimentel que deu a mão a mim e a minha turma do primeiro ano do então segundo grau e nos conduziu num passeio sem volta pelos caminhos do autor de Frauta de barro.
Num primeiro olhar, é verdade, entendi pouco o escrito daquelas páginas, tendo descoberto, graças ao livro, que não há erro de grafia no título e frauta: nada mais é do que a variação da palavra flauta, substantivo feminino.
Mas assim que a leitura seguiu atenta, houve encantamento com a teia de escritos tecida com simplicidade pelo poeta amazonense que nos apresenta o cotidiano, a cidade, os costumes e a si mesmo.
Na obra, Bacellar, como afirma a poetisa e acadêmica Astrid Cabral, assume nominalmente a importância da música na gestação de sua poesia.
Já no prólogo opta pela simplicidade, quando alude ao fato de ter achado em menino ‘um frio tubo de argila’ e ao se pôr a soprá-lo ‘rude e doce melodia’ ‘jorrou límpida e tranquila/ como água por um gargalo”.
Astrid continua: o autor refere-se também ao tom faceto e gaiato e a saudade dos longes da infância. “Tudo volta do monturo/ da memória em rebuliço/ Mas tudo volta tão puro!…” E antes de contar a Manaus dos seus primeiros anos, Bacellar fala das vestes do poeta: “E sobre
a cambraia fina/ da camisa de neblina,/ o arco-íris em gravata/ vai atado em nó singelo”; e dos objetos de todos os dias, com suas funções específicas, como em “Soneto do relógio de bolso”, lembram-me célebres vultos/ teus ponteiros nessa dança:/ Dom Quixote o dos minutos/ e o
das horas Sancho Pança.
Aliás, ao falar dos pequenos objeto diários, o poeta consegue a incrível façanha de escrever uma espécie de crônica em dois quartetos e dois tercetos, a métrica do soneto, produzindo textos deliciosos de ser lidos e recitados numa espécie de jogral, como fiz nos tempos de
colégio cumprindo tarefa passada por Vânia Pimentel. Vide os versos iniciais de “Soneto do chaveiro”: “Nessa argola de segredos,/ nesse aro de seguranças,/ o balé das minhas chaves/ dança niqueladas danças”.
Neste capítulo específico, Bacellar, segundo Astrid Cabral, cheio de argúcia, simplifica o soneto, reduzindo-o à métrica da redondilha, redimensionando-o, portanto, ao tema: miúdos objetos como lenço, canivete, caixa de fósforo, lápis, chaveiro etc.
Mas é quando escreve sobre a Rua da Conceição, em “Balada da Rua Conceição”, ou em “Ciranda à roda de um tronco”, ou, ainda, em “Beco do Pau-Não-Cessa”, que o poeta testemunha a Manaus em que nasceu,
cresceu e ainda mora, mas que já não existe mais. Porque o tempo passa e com ele surgem as transformações físicas e comportamentais da metrópole: “Vão derrubar vinte casas/ na Rua da Conceição./ Vão derrubar as mangueiras/ e as fachadas de azulejo/ da Rua da Conceição. E O Beco do Pau-Não-Cessa/ há muito que já deixou/ de ser beco de arrelia,/ hoje é um bem-comportado/ beco da Paz e Harmonia”.
Seguindo por estes escritos, Bacellar expõe curiosas e intrigantes histórias que formam a população e os costumes da cidade onde ajudou a fundar o revolucionário Clube da Madrugada movimento de reforma cultural de 1954.
O poeta escreve sobre Chiquinho das Alvarengas: “Chiquinho das Alvarengas,/ rico e gordo, gordo e rico,/ Creso de muitas arrobas, achatador de penico, conta um crime passional em Romance do Esquartejado: Depois, com a ponta da arma/ lhe espetando nas costelas/ o marido a obrigou/ que cortasse com o terçado/ braços, pernas e a cabeça/ do tronco do Alferes nu”. Registra em versos a história de Etelvina, a santa baré, estuprada e morta que, dizem, teve a virgindade recuperada por milagre: “Dizem (suave mistério!)/ que o corpo ao ser enterrado,/ recompôs-se dos sinais/ daquela violação”.
Não poderia faltar nesta poesia feito crônica de uma cidade que ficou lá atrás e que continua tão igual o “Torneio de papagaios”: “flechadas colhidas/ bruscas descaídas/ brandas empinadas/ quedas embiocadas/escudos rompidos/ dos famões vencidos/ desta imponderável/ ágil livre frágil/ heráldica aérea”.
E a “Receita de tacacá”, que dá uma suadeira doida tomado nesse calor amazônico: “sirva fervendo, pelando/ o caldo do tucupi,/ depois tempere a seu gosto:/ um pouco de sal, pimenta-malagueta ou murupi”, assim como os nomes das paróquias da cidade da época em que Frauta de barro foi escrito, na década de 1950.
“Aparecida seja paróquia ou piroca/ tudo vem a dar no mesmo/ pros padres redentoristas.
Na parte final do livro, o poeta tão cotidiano se revela maior que todos os dias, que a cidade, e fala de sentimentos e sensações, como em “Porta para o quintal”: “quais velhinhas comadres; nos varais/ a roupa brinca de navios de velas/ minha infância reinventando –, “Finis gentis meae”. Mas logo vem a Noite e, de mansinho,/ envolve em véus e guarda no escaninho/ da raça o resto e o pó que somos nós; ou em “Noturno no bairro dos Tocos”: “Há tanta angústia antiga em cada prédio!/ Em cada pedra nua gasta. E agora/ em necessário pranto que demora/ o amargo verso vem como remédio”.
Ao fim, Bacellar revela o homem que é em “Duas canções”. “O átrio todo se assombra/ da luz que nunca brilhou: aquela ilusória sombra/ do que eu não era passou”; e na homenagem que faz ao grande ator inglês, em “Soneto a Charles Chaplin”: “Se o teu poder de riso nos subjuga,/ o teu poder de lágrimas, por fundo,/ se faz em claridade. E lava o mundo”.
E lendo Frauta de barro, uma quase menina, depois mais adulta e hoje perto dos quarenta, descobri que a maravilha deste poeta, que ainda anda pelas ruas de Manaus com um bengala nas mãos, está na simplicidade da escrita; no olhar sobre o cotidiano que nos simples detalhes forma a vida.
*A autora é jornalista
Publicado na revista Valer Cultural – abril/2012
Luiz Bacellar morreu em 9 de setembro de 2012, em Manaus (AM).