Sartre narra a sua trajetória e convívio com as palavras
Jean Paul-Sartre (1905-1980), filósofo francês, tem a trajetória intelectual marcada pela formulação, divulgação e debates da filosofia existencialista. Seu êxito é atribuído à facilidade de expor ideias tanto em conversas quanto na escrita. Em seu livro As palavras (Nova Fronteira ), Sartre narra como se tornou escritor ainda adolescente, levado pela curiosidade de conhecer os mundos que se escondem nas páginas dos livros. E, a partir daí, dar sequência à essa dança que embala o conhecimento humano.
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Escreve-se para os vizinhos ou para Deus. Tomei o alvitre de escrever para Deus com o fito de salvar meus vizinhos. Eu queria devedores de obrigações e não leitores.
O desdém corrompia minha generosidade. Já no tempo em que eu protegia as órfãs, começava por me livrar delas, mandando que se escondessem.
Escritor, meu estilo não mudou: antes de salvar a humanidade, começaria vendando-lhe os olhos; só então me voltaria contra os pequenos mercenários negros e velozes, contra as palavras; quando minha nova órfã ousasse desatar a venda, eu estaria longe; salva por uma façanha solitária, a princípio ela não repararia, chamejando sobre uma prateleira da Nationale, no volumezinho totalmente novo que traria meu nome.
Advogo as circunstâncias atenuantes. Existem três. Primeiro, através de um límpido fantasma, era meu direito de viver que eu colocava em questão. Nesta humanidade sem visto que espera o bel-prazer do Artista, terão reconhecido, por certo, a criança empanturrada de felicidade que se entediava em seu poleiro; eu aceitava o mito odioso do Santo que salva o populacho, porque afinal o populacho era eu: eu me declarava salvador patenteado das multidões para efetuar minha salvação discretamente e, como dizem os jesuítas, ainda por cima.
Depois, eu tinha nove anos. Filho único e sem amigo, não imaginava que meu isolamento pudesse acabar. Cumpre confessar que eu era um autor extremamente ignorado. Recomeçara a escrever. Meus novos romances, à falta de melhores, pareciam-se com os antigos, traço por traço, mas ninguém tomava conhecimento deles.
Nem eu mesmo, que detestava reler-me: minha pena corria tão depressa que, muitas vezes, me doía o punho; eu atirava sobre o assoalho os cadernos preenchidos, acabava esquecendo-os e eles desapareciam; por essa razão eu não terminava nada: de que vale contar o fim de uma história quando o começo dela se perdera?
Aliás, se Karl se tivesse dignado conceder um olhar àquelas páginas, não teria sido a meus olhos leitor, porém juiz supremo, e eu teria temido que me condenasse. A escritura, meu trabalho escuso, não levava a nada e, ao mesmo tempo, tomava-se a si própria como fim; eu escrevia por escrever. Não me arrependo: fosse eu lido tentaria agradar, voltaria a ser maravilhoso. Clandestino, fui verdadeiro.
Enfim, o idealismo do clerc baseava-se no realismo da criança. Disse-o mais acima: por ter descoberto o mundo através da linguagem, tomei durante muito tempo a linguagem pelo mundo.
Existir era possuir uma marca registrada, alguma parte nas Tábuas infinitas do Verbo; escrever era gravar nelas seres novos foi a minha mais tenaz ilusão, colher as coisas, vivas, na armadilha das frases: se eu combinava engenhosamente as palavras, o objeto enleava-se nos signos, eu o apanhava.
Comecei, no Luxembourg, por me fascinar com um brilhante simulacro de plátano: eu não o observava; muito ao contrário, abria um crédito de confiança ao vazio, esperava; ao cabo de um instante, sua verdadeira folhagem surgia sob a aparência de um simples adjetivo ou, às vezes, de toda uma proposição: eu enriquecera o universo de um palpitante verdor.
Nunca depositei meus achados no papel: acumulavam-se, pensava eu, em minha memória. Na realidade, eu os esquecia. Mas eles me faziam pressentir qual seria o meu futuro papel: eu imporia nomes. Desde alguns séculos, em Aurillac, vãos amontoados de brancura reclamavam contornos fixos, um sentido; eu os converteria em verdadeiros monumentos.
Terrorista, só lhes visava o ser: eu o constituiria pela linguagem; retórico, só amava as palavras; eu ergueria catedrais de palavras sob o olho azul do termo céu. Construiria para milênios.
Quando apanhava um livro, podia abri-lo e fechá-lo vinte vezes, via muito bem que ele não se alterava.
Deslizando sobre essa substância incorruptível, o texto, meu olhar era apenas um minúsculo acidente de superfície, não atrapalhava nada, não gastava. Eu, em contrapartida, passivo, efêmero, era um pernilongo ofuscado atravessado pelos clarões de um farol; abandonava a escrivaninha, apagava invisível nas trevas, o livro continuava cintilando; por si só. Eu infundiria às minhas obras a violência destes jatos de luz corrosivos e, mais tarde, nas bibliotecas em ruínas, elas sobreviveriam ao homem.
Comprazi-me em minha obscuridade, almejava prolongá-la, torná-la um mérito meu. Invejava os detentores célebres que, nos calabouços, escreveram em papel de em- brulho. Haviam conservado a obrigação de resgatar seus contemporâneos e perdido a de conviver com eles. Naturalmente, o progresso dos costumes diminuía minhas oportunidades de abeberar meu talento na reclusão, mas eu não desesperava de todo: impressionada pela modéstia de minhas ambições, a Providência tomaria a peito realizá-las. Entrementes, eu me sequestrava por antecipação.
Ludibriada por meu avô, minha mãe não perdia uma só ocasião de pintar minhas alegrias futuras: para me seduzir, punha em minha vida tudo o que faltava à sua: sossego, lazer, concórdia; jovem professor ainda solteiro, uma bonita senhora idosa me alugaria um quarto confortável que recenderia a lavanda e a roupa branca lavada; eu iria ao liceu num pulo, voltaria do mesmo modo; à noite demorar-me-ia no umbral de minha porta a fim de prosear com a dona da casa, que me adoraria; todo mundo, aliás, gostaria de mim, porque eu seria cortês e bem-educado. Eu não ouvia senão uma palavra: teu quarto; esquecia o liceu, a viúva do oficial superior, o odor de província, via apenas um disco de luz sobre minha mesa: no centro de uma peça imersa na sombra, cortinas cerradas, eu me debruçava sobre um caderno encapado de pano preto.
Minha mãe continuava o seu relato; saltava dez anos: um inspetor-geral de ensino me protegia, a boa sociedade de Aurillac aceitava receber-me, minha jovem esposa me dedicava o mais terno afeto, eu lhe fazia belas crianças muito sadias, dois filhos e uma filha, ela recebia uma herança, eu comprava um terreno à saída da cidade, mandávamos construir e, todos os domingos, a família inteira ia inspecionar os trabalhos.
Eu nada ouvia: durante estes dez anos, não deixara minha mesa; baixinho, bigodudo como meu pai, empoleirado sobre uma pilha de dicionários, meu bigode encanecia, meu punho corria sempre, e os cadernos, um após outro, caíam no assoalho.
A humanidade dormia, era noite, minha mulher e meus filhos dormiam a menos que estivessem mortos, a dona da casa dormia; em todas as memórias, o sono me abolira. Que solidão: dois bilhões de homens estirados e eu, por cima deles, o único vigia.
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